Contrariamente
ao que parece, a liberdade de informação é uma noção oposta à liberdade de
expressão. A primeira consiste em difundir algo conhecido e seguro. A segunda
em apresentar publicamente uma visão pessoal. A liberdade de informação
pressupõe uma verdade objectiva. A liberdade de expressão implica que essa
verdade esteja ligada à relação que mantemos com algo e não a esse algo em si.
O sistema
da objectividade / subjectividade
O que
chamamos “informação” apresenta-se como um termo técnico: trata-se de um dado
sobre algo. Esse dado tem um carácter científico, para nós: deve ser exacto.
Uma informação pode ser falsa ou verdadeira. Quando se apresentam duas
informações contraditórias, uma deve dar lugar à outra: “Não é possível dizer
tudo e o contrário”. Contudo, as informações que temos sobre algo podem estar
incompletas, mas uma informação em si mesma, nunca pode estar incompleta. É
um dado conhecido e seguro que se pode completar com outros dados.
Para
descrever algo, um acontecimento, um facto, devemos fornecer informações
objectivas sobre o assunto. É certo que não é fácil escapar à nossa
subjectividade, mas apesar de tudo devemos procurar, com a maior força e
honestidade possíveis, ser objectivos: analisando os diferentes pontos de vista
subjectivos e desviando-nos, dentro do possível, das nossas opiniões.
Finalmente, a objectividade é um ideal, inacessível, mas para o qual devemos
inclinarmo-nos sempre, com a maior persistência.
Desse
modo, a objectividade é a noção fundamental que acompanha a informação. Se
podemos proporcionar informações objectivas sobre uma ocorrência, é porque esse
evento é objectivo. Um acontecimento objectivo não necessita de nós para
existir, existe fora de toda e qualquer relação que possamos ter com ele.
Esse acontecimento foi-nos concedido para observá-lo.
A lógica
aparente de tudo isto não deve eliminar o debate filosófico sobre a
objectividade. Esse debate interliga-se, frequentemente, com a questão da
subjectividade. Estamos de acordo em que não é possível conhecer um facto de
maneira objectiva e que devemos admitir e dar a conhecer a subjectividade com
que o conhecemos. Mas então, a subjectividade aparece como a crítica que a
objectividade aceita fazer a si própria. Situa-se no mesmo sistema de
pensamento. A objectividade afirma que as coisas estão em si próprias.
A
crítica subjectiva é conveniente. Basta apresentar um método de observação:
tudo depende do ponto de vista com que se vê; sendo assim, devemos dizer de
onde estamos a falar e também, aproximar-nos mais da verdade objectiva, comparar
pontos de vista diferentes. O ideal de uma verdade objectiva perpetua-se. Na
sua forma mais forte, a crítica subjectiva faz que pareça impossível conhecer
essa verdade. Na forma mais débil, limita-se a dar uma opinião, sem coloca-la
em dúvida: “Isto é o que penso do que todos conhecem”. O debate filosófico
sobre a informação não se limita a afirmar subjectividades.
A
relação e a questão do nosso lugar no mundo.
Esta
discussão, aparentemente sensata, sobre a objectividade e a subjectividade, cria
um impasse sobre um elemento fundamental: a relação. É certo que talvez “qualquer
coisa” não necessita de mim para existir, mas se falo do tema estabeleço uma
relação com ela. Portanto num determinado momento, no mínimo, está no meu campo
de percepção.
E
precisamente porque tem uma relação comigo, que falo do tema, caso contrário, nem
sequer o conheceria. Por outro lado, considero que é útil falar do assunto,
porque penso que isso que tenho no meu campo de percepção influi na minha vida,
directa ou indirectamente, física ou intelectualmente, etc. A relação que
mantenho com esse “algo” de que falo, agora é fundamental. O que direi sobre
o tema irá falar de nós, da relação que existe entre esse assunto e eu.
O debate
sobre a objectividade das coisas e o ponto de vista objectivo ou subjectivo não
tem valor nenhum se nos colocamos no campo da relação. Pelo contrário, a
questão da relação traz uma claridade nova sobre o uso da noção de informação
e objectividade. Quando penso em termos de relação, interrogo-me sobre
a influência que esse “algo” tem sobre mim e a ingerência que, por sua vez, eu posso ter
sobre esse assunto.
Quando
me coloco no sistema da informação e da objectividade, aprendo sobre algo e
esse conhecimento, em princípio, não tem influência nenhuma sobre mim, do mesmo
modo que não se coloca em questão a minha capacidade de acção. Por conseguinte,
o pensamento da relação indica a interacção entre o mundo e eu: investiga sobre
a influência, a determinação do mundo com respeito a mim e interroga-se sobre a
minha capacidade de acção.
Pensar em
termos de relação permite que apareça a problemática do nosso lugar no mundo.
Percebe-se, então, que a palavra “informação” não é um termo técnico, mas sim
uma noção filosófica que leva em si própria uma concepção do mundo. O
pensamento objectivo indica um objecto de estudo. A objectividade supõe a
objectivação do mundo. Nós já não vivemos em relação com o mundo, vivemos entre
as coisas. A nossa actividade não é pensada em termos de relações, mas sim de gestão
das coisas que conhecemos.
Desse
modo, o insensível deslocamento que se produz da liberdade de expressão à
liberdade de informação, é paralelo à redução da capacidade de acção do cidadão
e da aparição da figura de gestor. Vemos o mundo como um conjunto de objectos;
a nossa vida no mundo consiste agora, em administrar os objectos. E se
percebemos tudo como tal, aceitamos também, ser transformados em objectos.
Surge então o triste desmembramento do mundo, como o produto da ideologia da
objectividade. Jornalistas, sociólogos e outros especialistas objectivos
trabalham nesse sentido.
A não
possessão do mundo.
Para a
lógica da informação, a adquisição de conhecimentos é um fim em si mesmo. É o
objecto de atenção de todas as universidades e o propósito de qualquer pessoa
culta.
Desse
modo, a formação de um jornalista corresponde à aprendizagem de algumas
técnicas do ofício e a absorção de uma “cultura geral”. A figura do sábio, que
não existe na sociedade da informação, é substituída pela do homem culto cujo
conhecimento enciclopédico provoca admiração, mas enquanto “a soma do
conhecimento” aumenta vertiginosamente, o ser humano perde o vínculo com o
mundo. Desde “O Estrangeiro “ de Camus aos personagens de Kafka, a literatura é
percorrida por um ser alheio à sua vida.
Perdido
num mundo incoerente e absurdo, observa-o, disseca-o e destrói-o e não
encontra nada que o una a ele. O homem enciclopédico não conhece a experiência;
tudo lhe interessa, mas não se envolve em nada.
Assim o
conceito de informação conduz à nossa privação da posse consentida do mundo. A
partir de aí já não nos parece intolerável que outros vejam a realidade por nós
e nos digam como é: são simples técnicos que recebem e transmitem informação.
Um periodista objectivo é um intermediário técnico. As suas opiniões não devem
transparecer para não criar interferências entre nós e a informação. Os meios de
comunicação não são percebidos como mediadores entre nós e a realidade, mas sim
como suportes de informações neutrais. E no entanto, como vimos, a “informação”
não é um termo técnico, assim como “meio de comunicação”, tampouco é um suporte
técnico.
Os meios
de comunicação não conheceram a revolução vivida pelo cristianismo com a
Reforma. Antes do protesto de Martin Lutero, os sacerdotes eram reconhecidos
como intermediários naturais entre os crentes e a realidade divina. Depois da
Reforma, todos podem ler e compreender a Bíblia sem necessidade de uma
autoridade eclesiástica.
A imprensa
tem levado os povos das democracias a uma situação anterior à Reforma. Já não é
possível conhecer a realidade sem a ajuda de um terceiro. Na mente de todos, o repórter não é o que nos vincula com a realidade, mas alguém sem o qual é
impossível conhecê-la.
Esta
situação justifica-se pela contradição entre a nossa falta de tempo ou de meios
e a sede de conhecimento que temos. Gostaríamos de conhecer tudo o que acontece
de um extremo ao outro do mundo, mas não dispomos de meios para ir a esses
lugares, e também nos interessam outros temas. Mas o que significa esse
interesse?
O
interesse manifesta-se nas coisas com as quais não somos capazes de nos
relacionar: não podemos ir ao lugar e não temos tempo para nos dedicar mos a esse assunto…, mas pretendemos que influa na nossa vida. Inclusivamente que possamos
ter uma influência no mesmo.
Como é
que pode ser possível? Como poderíamos agir sobre algo que não podemos ver
com os nossos olhos e com o qual não nos podemos relacionar? Delegando, claro. Uma
vez mais confiamos nos outros para que ajam por nós. Já não são periodistas
cuja função se limita a relatar, mas sim políticos humanitários ou militares. Assim, agimos por delegação sobre coisas que conhecemos através de intermediários.
Poderíamos requalificar a nossa flexibilidade da seguinte forma: consentimos que
actuem em nosso nome, de acordo com o que outros afirmaram. A informação não
produz a acção, mas o consentimento.
Os
intelectuais dos Estados Unidos, Noam Chomsky e Edward S. Herman, analisaram
principalmente a fabricação do consentimento por parte da imprensa como
resultado do sistema económico (Manufacturing Coonsent, Pantheon Books, 1988.
Éd. Francesa: La Fabrique de L’opinion publique, Le Serpent à plumes, 2003).
Ademais a formação do consentimento não é um derivado do periodismo de
informação, mas a sua própria função.
Não
importa que os jornais estejam sob o poder das firmas multinacionais e dos
anunciantes publicitários. Foram concebidos para informar e não podem fazer
outra coisa senão construir o consentimento. Constituíram um procedimento de
submissão intelectual a terceiros. O homem enciclopédico é alheio à acção.
É oreceptor passivo de informações abstractas. Como espectador educado, às vezes
não consente e critica. Crítica sem relevância cujo efeito é dar confiança
ao espectador. O estado de espectáculo em que nos encontramos pode então ser
analisado, como um estado de espírito provocado pela ideologia da informação.
Devemos
tomar consciência dos indicadores fundamentais da noção banal de “informação”.
A ideologia da informação significa um estado de ânimo, uma forma de estar no
mundo: conhecimento abstracto, afastado de qualquer relação pessoal ou
colectiva; conversão do mundo num simples objecto de estudo; gestão das coisas;
gestão dos seres reduzidos ao estado de coisas; passividade na aquisição de
conhecimentos; submissão com respeito a terceiros e também, delegação da
capacidade de agir sobre o mundo; estado de espectáculo; consentimento; crítica
do espectador; passividade…
A
segurança da ideologia da informação é o método utilizado para manter os
cidadãos num estado de espectadores que consentem ou criticam. Não se pode levar
a cabo nenhuma luta democrática, aceitando essa ideologia que lhe é
fundamentalmente oposta.
Para a
democracia, a informação e por conseguinte “a liberdade de informação”, deve ser
combatida como ideologia do servilismo. No seu lugar, devemos defender a
liberdade de expressão, que tem a ver com a relação, a acção, o compromisso.
Falar do
mundo não é um acto descritivo, é uma acção com resultados: não nos contentamos em dizer algo tal como é, fazemo-lo existir de uma forma particular. A
informação, através de uma descrição pseudo-científica, reduz o mundo a uma
objectividade aparente. A expressão faz que o mundo exista para nós, de muitas
formas.
A
liberdade de expressão leva-nos a uma realidade muito mais rica, mais densa e
mais complexa que a instituída pela ideologia da informação. Sobretudo, dá-nos
novamente um lugar no mundo e faz com que a nossa capacidade de acção seja
efectiva.
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