As dinâmicas do capitalismo reproduzem desigualdades a todo o momento e exigem uma constante redistribuição espacial da produção; o salário mínimo é um instrumento dessa redistribuição e para uma conveniente paz social
Sumário
1 – Salário mínimo, um jogo de conveniências
2 – Salário mínimo – estreitamento do leque entre pobres e menos pobres
3 – Comparação do salário mínimo em Portugal com os dos países mais ricos
4 – Comparação do salário mínimo em Portugal com os dos países mais pobres
5 – Comparações através do salário médio horário divulgado pela OCDE
6 – Encolhimento dos rendimentos do trabalho em Portugal
++++++++++ | | | | | ++++++++++
1 – Salário mínimo, um jogo de conveniências
A existência de um salário mínimo pode ser uma via de estabelecer alguma dignidade ao trabalho, embora da sua inexistência não decorra necessariamente que não há limites à exploração dos trabalhadores; os países escandinavos e outros, na Europa, estão aí para o demonstrar. O salário mínimo visa estabelecer um parâmetro que, com a chancela estatal, garanta a existência das mais baixas estirpes do empresariato; um género de seguro para os “investidores”.
Mesmo com esse caráter oficial, não é aplicável para muito do trabalho precário ou, não qualificado, que alimenta a enorme massa de atividades tomadas como contidas na economia dita informal ou paralela. Por outro lado, o uso e abuso dos chamados recibos verdes, da figura do trabalho como independente (?) corresponde à ausência de abrangência da figura do salário; e visa assegurar a precariedade, permitir um despedimento, sem prazos ou indemnizações, uma vez que o trabalhador exerce atividade como “prestador de serviços”. Como o “prestador de serviços” acarreta com a maior fatia de descontos para a Segurança Social, essa figura, para o empresário é mais favorável do que um contrato de trabalho, no âmbito do qual, o chamado “empregador” acarreta com essa maior fatia.
Essa realidade, esses truques legislativos e regulamentares exercem uma pressão sobre todos os níveis salariais, mormente baixos ou intermédios, na proximidade do salário mínimo, pagos por empresas de menor rendabilidade e que encontram naquele referente, um elemento quantitativo útil para a prevalência, em geral de níveis salariais tão baixos quanto possível; e, para mais, sendo objeto de uma bênção governamental. Serve ainda para disciplinar as reivindicações sindicais, que tomarão como referente geral o tal salário mínimo, como elemento de ajustamento dos rendimentos do trabalho às necessidades das empresas, com todos os convivas – governo, sindicatos e patrões - muito cientes e irmanados pelo respeito para com os interesses nacionais… A fixação do salário mínimo inspirou a criação de um outro parâmetro de referência – o IAS-Indexante dos Apoios Sociais – aplicável a todas as prestações solidárias que amenizam a pobreza.
Recordemos que na lógica do capitalismo, mormente neoliberal, são as empresas que criam o emprego, competindo aos trabalhadores aceitar o sacrifício de um baixo salário que evite falências e desemprego. Numa revisão empresarial do Genesis, Deus criou primeiro o empresário e depois o trabalhador para o servir.
Nessa lógica circular, para as empresas, os salários são essencialmente um custo de produção ainda que diferente dos restantes custos, pois é o trabalho que cria valor; e a parcela desse valor criado e que é distribuído aos trabalhadores sob a forma de salário é um elemento essencial para garantir um elevado nível global de consumo que, por sua vez, vai garantir a existência dos capitalistas.
É difícil a vida dos capitalistas... Sobretudo, no contexto de um determinado estado-nação, numa época em que não existindo, para a circulação das mercadorias, os pesados crivos fronteiriços e alfandegários de outrora, a concorrência é sempre algo presente e, para mais, com dimensão e conteúdo pouco previsíveis.
A perpetuação do capitalismo exige a existência de normas salariais e laborais consensuais, pacificadas, mesmo com sacrifício, pelos trabalhadores; importante mesmo é que os capitalistas acumulem capital ininterruptamente e em montantes crescentes, para acompanharem o progresso tecnológico e investirem, garantindo uma boa vida aos ditos empreendedores e uma paga condigna aos seus servidores, mormente às castas militares, policiais e às classes políticas; e que se mantenha um alto nível de consumo, que absorva o rendimento de quantos trabalham, para que o ciclo do capital se feche e renove.
Claro que há uma narrativa piedosa que considera o salário mínimo como um patamar que evita uma degradante miséria que desenvolva roubos, assaltos, mendicidade, prostituição; cabendo pois, ao Estado, como “representante de todos nós”, olhar para que a pobreza se mantenha num nível tolerável; que, não incomode os bem instalados, nem afugente os turistas, cuja passagem pelo torrão pátrio tanto beneficia o imobiliário, a hotelaria, a restauração, a economia paralela e o abastecimento de off-shores. Aliás, a existência de pobreza é mantida pois muitas empresas e grupos religiosos vivem da delegação que o Estado lhes faz dessa pobreza; devidamente abastecidos pelo dinheiro dos impostos, que também pagam a fiscalização desses arcanjos empenhados no combate da pobreza, cujas fraudes são frequentes. Para esses dedicados combatentes da pobreza, quanto mais pobres necessitarem de ajuda… melhor!
Por outro lado, uma pressão exagerada sobre os rendimentos do trabalho pode gerar surtos grevistas, manifestações e convulsões sociais ou políticas, pouco favoráveis para a obtenção de um sorriso da parte das empresas de rating; e, esse rating, fornecido através de ignotas métricas, dá indicações para o mercado, sobretudo para os níveis das taxas de juro que sustentam aparelhos de estado, classes políticas, endividamento empresarial e dos consumidores, cujo bom ritmo de crescimento constitui a alegria do sistema financeiro. A mansidão na área laboral é, na realidade, uma exigência dos mercados.
A vigência de um salário mínimo não é algo de aplicação cabal. Primeiro, porque existem diversificados níveis de economia paralela onde aquele salário não é praticado. Depois, porque o uso e abuso de horas de trabalho extraordinário, não contabilizado nas estatísticas, nem pago, reduz efetivamente a retribuição por hora de trabalho para muitos assalariados. Por outro lado, o trabalho a tempo parcial ou o trabalho precário, constituem técnicas de gestão para a domesticação da força de trabalho e de embaratecimento do seu peso nos custos de produção.
A fixação de um salário mínimo – onde exista – constitui um elemento geral de comparação, para os capitalistas globais, mormente para os investidores que procuram local para uma rentável instalação. Faz parte da esgrima habitual no seio das classes políticas, entre governos e organizações do patronato - que se dizem em grande esforço para aumentar o salário mínimo – e que têm como contraponto as oposições ou as organizações sindicais que, por deveres de ofício, clamam sempre mais. Aliás, o jogo mediático contraria a realidade; os aumentos no SMM correspondem ao preço de um café diário e, não produzem quebras no emprego nem custos adicionais relevantes nas empresas. Não promovem, portanto, qualquer redistribuição do rendimento.
Esta lógica de diálogo, de procura de consenso entre o trabalho e o capital permite a continuidade do capitalismo, nada altera na sua essencialidade. Não evita o desvario ambiental e climático, não estanca as lógicas militaristas, não destrói as taras nacionalistas nem fomenta as solidariedades da multidão; não coarta a pulsão genocida do capital, a sua focagem na redução substancial da Humanidade e mostra-se neutra face a deriva capitalista em rédea solta, entregue às suas próprias dificuldades e contradições, apostando - e decididamente - nas tecnologias que ajudem a perpetuar o sistema.
Essa lógica de diálogo consiste na permanente procura de redução de um prejuízo, sabendo-se que o mesmo se vai reproduzir muito em breve. Demasiadas vezes, esses acordos saudados como vitórias dos trabalhadores rapidamente são torpedeados pela inflação, pela manipulação das formalmente caóticas legislações laborais e tributária e outros parâmetros que a tentacular máquina estatal tem ao seu dispor. Contrariamente aos humanos, os gatos não perdem tempo a tentar alcançar a ponta da cauda... caçam ratos!
No âmbito das democracias de mercado e no seio da grande convergência estratégica entre os governos e as oposições respetivas, discute-se muito a partilha dos rendimentos da propriedade capitalista mas nunca a fulcral e basilar questão da propriedade capitalista, ela própria, encarada implicitamente, como uma legítima dádiva dos deuses a alguns, com exclusão da grande massa da multidão.
2 – Salário mínimo – estreitamento do leque entre pobres e menos pobres