Bill Clinton, na sua campanha presidencial, tornou famoso o slogan “É a economia, estupido!”. O seu vice-presidente, Al Gore, poderia ter preferido “É o clima, estupido!”.
No caso dos fogos assassinos, em Portugal, que o governo reconhece que se irão repetir, há duas opções: manter o regime centrado em fazer crescer a economia – e como se sabe, mesmo no deserto, é possível encontrar como fazer dinheiro extraindo do solo (ou da zona marítima exclusiva) aquilo que lá possa haver – ou fazer um regime novo capaz de proteger as pessoas.
A mudança de regime político, que todos sabemos necessária, mas não sabemos como se vai fazer, dá sinais de vida, pela boca do governo. A respeito dos desastres dos fogos, o governo insiste que o estado não é capaz de cumprir as suas funções: os fogos hão-de repetir-se, como já tinha avisado, e as populações só têm uma possibilidade de defesa: a auto-organização.
O regime conduziu o país à incapacidade de defesa contra o clima e alheia-se das populações. O novo regime que há-de sobrevir já tem um mote para se orientar: favorecer a auto-organização das populações na sua luta contra os fenómenos climáticos extremos, única solução perante a auto-proclamada impotência do estado.
Quem o diz é um governo das esquerdas. Que não pode, realisticamente, ser acusado de pretender reduzir o âmbito da intervenção do estado. O que ocorre, como é público e notório, é que há uma evidente contradição insanável entre os pressupostos de organização do ordenamento do território, incluindo a extracção de madeira, a política de florestação, o estatuto da propriedade, e a protecção da vida das pessoas e dos respectivos bens.
O regime democrático de integração europeia, em Portugal, caracterizou-se pela infantilização, pela despolitização, pela anestesia da autonomia das populações, em nome da autoridade e competência dos partidos e, de quando em vez, da ciência.
Esta democracia que se afunda, assim desenhada, ajustou-se bem à globalização: a minoria bem formada e bem colocada recolheu os frutos do seu cosmopolitismo. Temos os CEO mais bem pagos da Europa. Tratam o resto das pessoas com salários de miséria e uma desorganização muito bem organizada – como aquela que permitiu os escandalosos colapsos de todos os bancos portugueses e da PT, mais a corrupção associada ao financiamento de partidos e/ou de governantes.
As reacções do governo aos desastres dos fogos, a posição de indiferença da ministra responsável pelo sistema de protecção civil à vergonha nacional – aparentemente agarrada ao poder por ligações partidárias impossíveis de desgrudar – reflecte bem o regime da pesporrência. O secretário de estado, quando explica que do estado não se pode esperar mais, além de sinceridade, está a mostrar o caminho que, racionalmente, um novo regime político útil deveria saber inaugurar: a auto-organização das populações na sua própria defesa. Para o que a geração mais bem formada de sempre, embora ensinada na complacência, poderia, caso esteja disponível, dar uma ajuda preciosa. Por exemplo, ajudando a multiplicar iniciativas como as da Rede Reflorestar Portugal, da Aliança pela Floresta Autóctone ou da APAGAR – Aliança Para Acabar com as vaGAs Recorrentes de Fogos.
Os defensores da tese da mão criminosa deverão ponderar quem deve passar, a partir de agora, a ser perseguido: os tachistas que usam o comando da protecção civil para subir na vida, desorganizando pelo caminho a capacidade de intervenção do estado, ou as populações que resistem a viver fora das cidades, despolitizadas pelas políticas das últimas décadas e agora chamadas, sem mais avisos nem preparação, à auto-organização?
Quem precisa de se auto-organizar é todo o povo português (e, na verdade, europeu e norte-americano).
O regime democrático fez do País, em termos de ordenamento do território e protecção civil, aquilo que o governo reconhece: um país ingovernável. Aquilo que as escolas e as universidades fizeram, a respeito da consciência ambiental, foi integrar as preocupações ecológicas em recomendações de consumo. O beco sem saída é hoje evidente. Mas é preciso tirar daí consequências políticas: este regime não serve as populações!
Um país à espera da desertificação causada pelo aquecimento global, em vez de se preparar e desenhar uma estratégia para enfrentar os novos tempos, entretém-se a auto-satisfazer-se com o crescimento. Está tudo a correr bem, no campo económico e financeiro, mostram os números. Os fogos excitarão ainda mais o crescimento, pois será preciso reconstruir e comprar mais coisas para substituir as que agora arderam, a somar às despesas da própria actividade de combate a incêndios.
Isto prepara-se para ficar um deserto e os governos, nacionais e locais, continuam a explorar a terra e as pessoas, como habitualmente. Para quem manda e deveria ser responsável, de facto, a desertificação não é um problema. Se as estradas passarem a estar intransitáveis, passam a fazer campanha de avião.
Quando a separação de interesses fundamentais entre quem nos governa e quem é governado se torna tão profunda como o é actualmente, há que acenar com espantalhos e prender uns bêbados, que não servem para outra coisa senão fazer de bodes expiatórios. Já limpar da corrupção o país e, também, a indústria de fogos, isso – é preciso tomar consciência – não está a ser feito. Basta ler os trabalhos da TIAC para o saber.
A justiça criminal previne crimes depois deles ocorrerem. Como dizem os juristas, é óptima a tratar de bagatelas penais, a prender pilha galinhas. Já é praticamente impossível tratar com a corrupção ou a criminalidade de colarinho branco, diz-se. Como se pode ver no caso Sócrates. Aquilo que o João Cravinho gritou aos sete ventos, para quem o queria ouvir – de que a corrupção estava instalada ao mais alto nível do estado (que ele conhece tão bem) – não serviu de nada. As vozes do Banco Central Europeu, anos antes, quando avisou que o primeiro problema financeiro de Portugal era a corrupção; ou da recente campanha presidencial de Paulo Morais, cuja popularidade política se pode comparar com a de Isaltino Morais, esbarram com a indiferença nacional.
Tal como a guerra colonial ditou o fim da ditadura mais de uma década antes do 25 de Abril, a crise financeira de 2008 ditou o fim do regime democrático em Portugal, que se arrasta por falta de capacidade de encarar as realidades. Em vez de ser dada a voz ao povo, a voz foi entregue à Merkel e aos seus banqueiros preferidos, através da política “Para além da Troika!”. Ficou evidente que o capital português vivia da especulação e corrupção (de que a PT é o melhor exemplo). Como seria de outro modo se a convicção dos economistas de serviço era – como o disse Guterres na ocasião da entrada no Euro – Portugal não precisava mais de se preocupar com problema financeiros, a cargo da Alemanha e outras grandes potências?
Com Passos Coelho, passou-se à ideia consensual do controlo financeiro, depois da entrada de novos investidores (chineses, Vistos Gold) e novos velhos gestores (até então, de segunda linha), nos bancos e empresas do regime e na política.
Em 2014, a aliança de todas as esquerdas interrompeu, aparentemente, o interregno da soberania nacional. Porém, a herança do regime decadente na ordenação do território – usada pela aliança corrupta entre autarcas, partidos, construção civil, para lavar e criar dinheiro – não foi subvertida. Adaptou-se às novas circunstâncias.
O megaprocesso criado em torno de Sócrates pela Procuradoria-Geral da República, para se auto-legitimar e recuperar da cegueira que caracterizou a sua congénere até à crise financeira, consome todas as energias judiciais. O julgamento do regime, como é típico do nosso estado, demorará tempo suficiente para quando acabar já o regime tenha acabado.
A política continua a ser a distribuição pelos amigos e a justiça porrada nos mais desprevenidos. Apesar do peixe graúdo, e visto existir esse peixe graúdo, como fazia o humorista, há que perguntar: “Que dê os outros?” Ninguém sabia de nada?
Eu acredito que de facto, como aconteceu na Casa Pia, ninguém sabia de nada. Porque o único que queria saber de denunciar os problemas estava isolado e era tratado com doido. João Cravinho, Ana Gomes. Quem quer fazer figura de alienado num país de gente cordata?
Na prática, continua a haver quem ganha balúrdios por alegadamente ser de uma competência singular, nomeadamente por ter a desfaçatez de usar influências para circular entre os sistemas público e privado, entre o partido e a construção civil e a banca, entre os meios de comunicação social e as sociedades secretas. Aprende – como disse o Salgado ter aprendido – que nunca se confessa a culpa e o dolo. Se tiver que ser condenado, que seja no fim do final mais longínquo possível. E sempre alegando inocência e perseguição política, como terá ensinado Berlusconi.
O país assistiu à novela da licenciatura do Sócrates, alinhando na complacência dos comentadores (que isso era irrelevante para a política, diziam). Mesmo que a universidade que lhe concedeu a licenciatura tenha sido fechada pelo governo de Sócrates, nada perturbou o marasmo. O homem até teve a lata de se queixar à justiça de difamação contra quem quis manter o caso na praça pública. Em 2017 ficámos a saber algumas das consequências dessa atitude nacional: a inoperacionalidade dos comandos da protecção civil, tomados por partidarite. Mais preocupados em fazer cursos superiores à pressa para agarrar os tachos do que a assumir responsabilidades públicas pelos seus actos.
No caso dos incêndios em Portugal, o estado falhou! O estado criado pelo regime democrático, que custa a derrubar, é um perigo. Está tomado por interesses alheios à protecção das pessoas e bens. Ele próprio reconhece a necessidade de auto-organização dos portugueses, se se quiser pensar em fazer alguma coisa quanto ao prognóstico de desertificação do país, no fim do século. Ou antes.
É urgente reinventar a democracia, num regime novo, antes que a extrema- direita, como está a fazer em grande parte da Europa e nos EUA, faça do regime que está para vir uma ditadura belicista e persecutória dos direitos e liberdades individuais.
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