O ALUNO
As
entrevistas com a professora de Putin revelam um estudante com uma mente brilhante. Putin
chegava sempre atrasado à escola e não se filiou nos Pioneiros. Mas depois, aos
10 anos, descobriu as artes marciais e, depois de ter lido novelas e ter visto
filmes sobre espiões, desenvolveu uma fixação obstinada de ingressar no KGB. Aos
16, dirigiu-se ao quartel general do KGB onde lhe foi dito que tinha de
frequentar uma Faculdade de Direito e manter a boca fechada, se realmente
quisesse ser espião. Apesar das súplicas e das ameaças dos seus pais e do
professor de judo, decidiu fazê-lo.
Recorda-se da Primária?
Nasci em Outubro, por isso, não entrei na
escola senão quando tinha quase oito anos. Ainda temos a fotografia no arquivo
da família: Estou com um uniforme cinzento, à moda antiga. Parece um uniforme
militar e, por qualquer razão, estou de pé com um vaso de flores na mão. Não um
ramo, mas um vaso.
Queria ir para a escola?
Não,
não propriamente. Gostava de brincar ao ar livre, no nosso pátio. Havia dois
pátios juntos, como um poço de ar e a minha vida decorria aí. Às vezes a minha
Mãe surgia à janela e gritava “Estás no pátio?” Eu estava sempre lá. Desde que
não fugisse, podia brincar no pátio sem pedir permissão.
E nunca desobedeceu, nem uma vez?
Quando
tinha cinco ou seis anos, fui até à esquina da rua principal sem consentimento.
Foi no Primeiro de Maio. Olhei à volta. As pessoas surgiam fazendo muito
barulho. A rua estava muito animada. Estava mesmo um pouco assustado.
Então,
num inverno, quando era um pouco mais velho, os meus amigos e eu, decidimos
sair da cidade sem dizer nada aos nossos pais. Queríamos fazer uma viagem.
Saímos
do comboio, algures e estávamos completamente perdidos. Fazia frio. Tínhamos
trazido alguns fósforos e tentámos fazer uma fogueira. Não tínhamos nada para
comer. Ficámos completamente gelados. Voltámos para o comboio e fomos para casa.
Apanhámos de cinto por essa façanha. E nunca mais quisemos fazer outra viagem.
Então nunca mais procurou aventuras?
Durante
algum tempo. Especialmente quando fui para a escola. Frequentei a Escola no.
193, que estava na mesma rua da minha casa, a cerca de 7 minutos a pé, da
primeira até à oitava classe. Chegava sempre atraso, durante a primeira classe,
pois mesmo no inverno, não vestia muitos agasalhos. Demorava muito tempo a
vestir-me, a correr para a escola e depois tirava o casaco. Então, para poupar
tempo, nunca vestia o casaco e disparava para a escola como uma bala e
sentava-me na minha carteira.
Gostava da escola?
Durante
algum tempo. Enquanto diligenciei ser, como é que hei-de referir? O líder tácito. A escola era muito perto da minha casa. O
nosso pátio era um refúgio seguro, e isso ajudou.
As pessoas prestavam-lhe atenção?
Não tentei comandar os outros. Era mais importante
preservar a minha independência. Se tivesse de comparar com a minha vida de
adulto, diria que o papel que desempenhei em criança era como a função da área
judicial e não do ramo executivo. Enquanto funcionei dessa maneira, gostei da
escola. Mas não durou para sempre. Em breve, tornou-se evidente que as minhas
capacidades do pátio não eram suficientes e comecei a praticar desporto. E para
manter o meu estatuto social tinha de começar a ter bom aproveitamento na
escola. Para ser sincero, até à sexta classe, tinha sido um aluno muito
imprevisível.
Vera Dmitrievna Gurevich:
Conheci
Volodya quandi ainda frequentava a quarta classe. A professora, Tamara Pavlovna
Chizhova disse-me uma vez: “Vera Dmitrievna, fica com a minha classe. Não são
maus alunos.”Fui visitar a classe e organizei um club de língua alemã. Foi
interessante ver quem apareceu. Vieram cerca de 10-12 alunos. Tamara Pavlovna
perguntou quem estava lá. Disse-lhe: “Natasha Soldatova, Volodya Putin . . .Ela
ficou surpeendida. “O Volodya também? Nem parece dele.” Mas ele demonstrou
muito interesse pelas lições.
Ela
disse: “Bem, espera e verás.” Perguntei: “O que queres dizer com isso?” Ela
respondeu que ele era demasiado manhoso e desorganizado. Nem sequer estava nos
Pioneiros.
Habitualmente,
era-se aceite nos Pioneiros na terceira classe. Mas o Volodya não porque era
muito astuto. Algumas classes estudavam Inglês e outras Alemão. O Inglês
estava mais na moda do que o Alemão e havia mais aulas de Inglês. Volodya
acabou na minha classe. Na quinta classe, ele ainda não se tinha evidenciado,
mas senti que ele tinha potencial, energia e personalidade. Vi o seu grande
interesse pela língua. Aprendeu-a facilmente. Tinha muito boa memória e uma
mente rápida.
Pensei:
Este miúdo vai ser alguém. Decedi dedicar-lhe mais atenção e desencorajei-o a
conviver com os rapazes da rua. Tinha amigos na vizinhança, dois irmãos de
apelido Kovshov e costumava andar com eles, a saltar dos telhados das garagens e
dos barracos. O pai de Volodya não gostava muito disso. Mas não conseguia
afastar Volodya dos irmãos Kovshov.
O
pai dele era muito austero e imponente. Muita vezes tinha um ar zangado. A
primeira vez que o vi, fiquei assustada. Pensei: “Que homem tão severo e
rígido. E depois verifiquei que era uma pessoa de bom coração. Mas não era de
beijos e abraços. Não havia nada de cenas amorosas em casa.
Uma
vez fui visitá-los e disse ao pai de Volodya, “o Seu filho não está a trabalhar
toda a sua potencialidade.” Ele disse: “Bem, e que posso fazer? Matá-lo ou o
quê? Respondi: “Tem de ter uma conversa com ele. Vamos tentar melhorá-lo, o
senhor em casa e eu na escola. Ele pode ter melhores notas. Ele percebe tudo
muito rapidamente.” Em todo o caso, concordámos fazê-lo progredir; mas de
facto, não tivémos nenhuma influência especial.
O
próprio Volodya mudou, repentinamente, na sexta classe. Era óbvio; tinha
estabelecido um objectivo. Acima de tudo, tinha compreendido que tinha de
conseguir algo, na vida. Começou a ter melhores notas e conseguia-o facilmente.
Finalmente, foi aceite nos Pioneiros. Houve uma cerimónia e fomos a casa de
Lenin, onde foi admitido nos Pioneiros. Pouco depois tornou-se o líder da sua
unidade.
Por
que motivo não foi admitido nos Pioneiras até à sexta classe? Foi tudo muito mau até então?
Claro.
Eu era um rufia, não era um Pioneiro.
Está a ser tímido?
Está a
insultar-me. De facto, era um mau rapaz.
Vera Dmitrievna Gurevich:
A maioria das crianças gostava de ir aos bailes.
Tivemos espectáculos nocturnos na escola. Designávamo-los como o Clube de
Cristal. E encenávamos peças de teatro. Mas Volodya não participou em nada
disso.
O pai queria realmente que ele tocasse acordeão e obrigou-o
a ter aulas nas primeiras classes. Volodya resistiu. Embora gostasse de guitarra. Cantou principalmente
Vysotsky, * todas as músicas do álbum ‘Vertical’, sobre as estrelas e sobre
Seryozha de Malaya Bronnaya Street.
* Vladimir Vysotsky era um cantor de música popular
russa.
Mas
não gostava muito de socializar. Preferia desportos. Começou a praticar artes
marciais para aprender a defender-se. Quatro vezes por semana, tinha aulas
algures, perto da Estação Finland, e ia muito bem. Gostava de Sambo Depois, começou a tomar parte em competições que determinavam que ele viajasse
para outras cidades.
Comecei
a praticar desporto quando tinha 10 ou 11 anos. Logo que se tornou claro que a
minha natureza combativa não me manteria como rei do pátio ou da escola, decidi
entrar no boxe. Mas não durou muito tempo. Em breve, tinha o nariz quebrado. A
dor foi terrível. Não conseguia nem tocar na ponta do nariz. Mas, embora todos
me dissessem que eu precisava de uma operação, não fui ao médico.
Por quê?
Sabia que iria curar-se por si mesmo. E assim
aconteceu. Mas, depois disto perdi o ‘bichinho’ do boxe. Então decidi praticar
sambo, uma combinação soviética de judo e luta livre. Nessa época as artes
marciais eram muito populares. Fui para uma aula, perto da minha casa e comecei
a praticar. Era um ginásio muito simples que pertencia ao clube atlético Trud.
Tinha um professor muito bom, Anatoly Semyonovich Rakhlin, que dedicou toda a
sua vida a essa arte marcial, e ainda treina raparigas e rapazes até hoje.
Anatoly
Semyonovich desempenhou um papel decisivo na minha vida. Se não me tivesse
envolvido no desporto, não faço ideia como é que a minha vida teria sido. Foi o
desporto que me tirou das ruas. Sinceramente, o pátio não era um bom ambiente
para uma criança.
Primeiro aprendi sambo. Depois judo. O
professor decidiu que deveríamos todos praticar judo e assim fizemos.
O
Judo não é apenas um desporto, como sabem.É uma filosofia. É respeitar os mais
velhos e os seus opositores. Não é para fracos. Tudo no judo tem um aspecto positivo.
Vai-se para o tapete, fazem mutuamente uma vénia, seguem o ritual. Como sabe,
poderia ser feito de maneira diferente. Em vez de se curvar perante o seu
oponente, poderia agredí-lo na testa.
Fumou alguma vez?
Não.
Tentei várias vezes, mas nunca fumei regularmente. E quando comecei a fazer
desporto, coloquei isso completamente de lado. Comecei a fazer exercício físico
de vez em quando e depois todos os dias. Em breve, não tinha tempo para mais
nada. Tinha outras prioridades; tinha de me pôr à prova no desporto, alcançar
algo. Estipulei objectivos. O desporto realmente teve uma grande influência em
mim.
E não praticou karaté?
Naqueles
dias era um desporto popular, embora pensasse que tinha sido banido. Pensávamos
que o karaté e outros desportos de não contacto eram como o ballet. Os desportos
eram desportos se se tivesse de derramar suor e sangue e trabalhar duramente.
Mesmo
quando o karate se tornou popular e as escolas de karaté se começaram a
espalhar, considerávamo-las apenas como empresas de fazer dinheiro. Nós, pelo contrário,
nunca pagámos dinheiro pelas nossas lições. Todos nós pertencíamos a famílias
pobres. E como as lições de karaté custavam dinheiro desde o princípio, as
crianças que aprendiam karaté pensavam que eram de primeira classe.
Uma
vez fomos para o ginásio com Leonid Ionovich, o instrutor mais velho do Trud. Os alunos
de karaté estavam a treinar no tapete, embora fosse a nossa vez. Leonid foi até
junto do treinador e disse que era hora da nossa aula. O treinador de karaté
nem sequer olhou para ele, como se dissesse, vai-te embora. Então Leonid, sem
dizer uma palavra, sacudiu-o, apertou-o levemente e o arrastou para fora do
tapete. Ele tinha perdido os sentidos. Então Leonid virou-se para nós e disse: “Entrem
e ocupem os vossos lugares” Essa foi a nossa atitude em relação ao karaté.
Os seus pais
incentivaram-no a ter essas lições?
Não,
foi precisamente o contrário. Ao princípio, estavam muito desconfiados. Pensavam
que eu estava a adquirir alguma espécie de capacidade perigosa para usar nas
ruas. Mais tarde, conheceram o professor e começaram a visitar a sua casa e a
atitude deles mudou. E quando alcancei os meus primeiros bons resultados, os
meus pais compreenderam que o judo era uma arte importante e útil.
Começou a ganhar?
Sim,
dentro de um ano ou dois.
Vera Dmitrievna Gurevich:
Ensinei Volodya desde a quinta até à oitava classe,
inclusive. Então tivemos de decidir para que escola o devíamos mandar. E a
maior parte da classe foi para a Escola No. 197. Petra Lavrova tinha começado a
ir a casa de Putin a partir da sexta classe. Volodya não tinha um interesse
especial por meninas; mas claro que elas estavam interessadas nele. De repente,
ele anunciou a todos: “Vou para a Universidade.” Perguntei-lhe: “Como?” Ele
respondeu: “Resolverei esse problema por mim mesmo”.
Mesmo
antes de ter terminado o Secundário, queria trabalhar nos serviços secretos.
Era um dos meus sonhos, embora parecesse tão provável como uma viagem a Marte.
E claro, por vezes, as minhas ambições mudavam. Também queria ser marinheiro. E
numa certa altura, também queria ser piloto. A Academia da Aviação Civil é em
Leninegrado, e eu estava empenhado em entrar. Li a litereatura e cheguei mesmo a
subscrever um jornal sobre aviação. Mas depois, os livros e os filmes de
espiões como “A espada e o Escudo”
tomaram conta da minha imaginação. O
que me surpreendia mais, acima de tudo, é como o esforço de um homem podia
alcançar o que exércitos inteiros não conseguiam. Um espia podia decidir o
destino de milhares de pessoas. Pelo menos, essa era a maneira como eu
compreendia.
A Academia de Aviação Civil perdeu, rapidamente, a
sua emoção. Tinha feito a minha escolha. Queria ser um espião. Os meus pais não
conseguiam compreender. O meu professor de judo foi vê-los e disse-lhes que,
como eu era um atleta, podia entrar no instituto sem praticamente ter de fazer
exames. Por isso, eles tentaram dizer-me para ir para um instituto. O meu
professor tomou o partido deles. Não podia compreender porque é que eu
resistia.”Ele tem uma vantagem de 100% de entrar na Academia da Aviação Civil,”
disse aos meus pais. E se não entrar na Universidade, então poderá ir para o
Exército.”
Foi uma situação muito difícil. O meu Pai tinha uma
personalidade dominante. Mas eu finquei-me no meu desejo e disse que tinha
decidido.
Então,
outro dos meus treinadores do Trud Club, Leonid Ionovich, veio visitar-me. Era
um tipo inteligente. “Bem”, disse-me, “Para onde vais?” Claro que já sabia. Estava
só a ser astuto. Disse-lhe: “Para a Universidade.” “Oh, óptimo, vai ser bom
para ti”, disse, “para que departamento?” “Para a Faculdade de Direito”, respondi.
Então, rugiu: “O quê? Para apanhar pessoas? Que estás a fazer? Vais ser um
polícia, compreendes?” Sentí-me insultado. “Não vou ser um polícia!” Retorqui
aos berros.
Pressionaram-me
durante um ano. Só aumentaram a minha vontade de ir para a Faculdade de
Direito. Mas porque razão a Faculdade de Direito?
Para
saber como ser um espião, perto do nono ano tinha ido à Secretaria da
Directoria do KGB. Veio um funcionário e escutou-me. “Queria trabalhar para
vós”, disse-lhe “Excelente, mas há várias questões” respondeu-me. “A primeira,
não empregamos pessoas que venham ter connosco por sua iniciativa. A segunda,
só pode abordar-nos depois da tropa ou depois de qualquer tipo de educação
superior civil.”
Eu
estava intrigado. “Que tipo de educação superior?” perguntei. “Qualquer uma!”
respondeu. Provavelmente queria despachar-me. “Mas qual é a
preferida?”perguntei. “A Faculdade de Direito”. E foi assim. A partir desse momento,
comecei a preparar-me para a Faculdade de Direito da Universidade de Leningrado.
E ninguém me pôde impedir.
Mas
os meus pais e os meus treinadores tentaram. Ameaçaram-me com o serviço militar
durante bastante tempo. O que não compreenderam é o que o exército me servia
muito bem. Claro que teria atrasado um pouco o meu progresso, mas isso não me desviaria
da minha decisão.
No
entanto, os treinadores tinham mais truques na manga. Quando fui à Universidade
matricular-me nas classes preparatórias, soube que tinham feito listas de
atletas a quem deveria ser dada a prioridade na admissão à Universidade. Soube,
por um facto, que não estava na lista. Mas quando estava a matricular-me, o meu
professor de ginástica tentou forçar-me
a aderir ao Burevestnik Club. Perguntei-lhe: “Como posso mudar para lá?”E ele
respondeu, “Ajudámos-te a entrar na Universidade, então, por favor tem a
bondade...”Eu sabia que estavam a aprontar alguma coisa.
Fui
ter com o Reitor. Entrei e disse-lhe sinceramente, “Sou forçado a transferir-me
para Burevestnik. Não penso que deva fazê-lo.” E o reitor, o Prof. Alekseyev,
um homem bondoso, disse: “Por que é que o estão a forçar?” Respondi, “ Porque
supostamente ajudaram-me, como atleta, a entrar na Universidade e agora tenho
de retribuir-lhes, indo para Burevestnik.”
Ele
retorquiu: “É verdade? Não pode ser! Todos entram nesta Universidade em
igualdade de circunstâncias, avaliados pelo seu conhecimento, não através de
listas de atletas. Espere um momento, vou procurar”. Foi à secretária dele,
pegou numa lista e perguntou-me qual era o meu último nome. “Você não está na
lista,” disse, “Portanto, pode dizer-lhes com segurança, para irem embora”. E foi o que eu fiz.
A seguir:
PARTE 3
O
ESTUDANTE UNIVERSITÁRIO
Tradutora: Maria Luísa de Vasconcellos
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